Junho ainda não passou
Paralisia da esquerda, que permitiu a cooptação dos protestos de 2013 pela direita, não foi superada.
Em seu grande romance Pastoral americana, Philip Roth escreve: “People think of history in the long term, but history, in fact, is a very sudden thing” (as pessoas pensam na história a longo prazo, mas a história, na verdade, é uma coisa muito repentina). Junho de 2013, no Brasil, serviria para ilustrar esta afirmação.
Junho de 2013 continua sendo o nó não desatado para a compreensão dos horizontes da esquerda brasileira. As ilusões do primeiro momento, quando alguns acreditaram que a revolução estava chegando, foram dissolvidas no desenrolar dos acontecimentos. Mas permanece o discurso oposto, o discurso do apocalipse das ruas. Só que a questão não é que as mobilizações de junho foram, em boa medida, capturadas pela direita. A questão é por que a esquerda deixou isso acontecer. A questão não é que Dilma ou Haddad tenham, em algum momento, apresentado a proposta de abrir seus gabinetes e negociar com os “líderes” dos movimentos. A questão é entender que esses movimentos tinham bons motivos para desconfiar de negociações fechadas em gabinetes. A questão, enfim, é que junho mostrou a presença de enormes rios de insatisfação no mundo social, que a esquerda no poder foi incapaz de ouvir. Pode xingar de autonomista, de amorfo, de imaturo, do que quiser; mas manifestou-se ali uma vontade de mudar o mundo que a esquerda no poder, satisfeita em sua posição de administrar o mundo tal como é, preferiu ler pelo signo da sabotagem.
Para a quase totalidade dos observadores da política brasileira, fossem eles cientistas políticos, jornalistas ou formuladores de estratégias partidárias, as manifestações de junho de 2013 foram o proverbial raio em céu azul. Depois, em retrospecto, não foi difícil detectar indícios de inconformidade que vinham de antes. Havia, em especial, um aquecimento da atividade grevista, muitas vezes de forma espontânea, ao largo das burocracias sindicais, que indicava insatisfação com a expansão do mercado de trabalho centrada em empregos de baixa qualificação e de baixo salário.
Mas ninguém, literalmente ninguém, previa uma explosão daquela magnitude. A política brasileira parecia reduzida à disputa entre o PT, na centro-esquerda, e o PSDB, na centro-direita, os partidos que tinham ocupado as duas primeiras posições nas eleições presidenciais de 1994, 1998, 2002, 2006 e 2010 (e ninguém duvidava que o cenário se repetiria em 2014). As diferenças programáticas entre eles eram mais de ênfase do que de fundo. Os petistas haviam abandonado, fazia tempo, qualquer veleidade anticapitalista. No governo, adotaram sem pestanejar as políticas de “responsabilidade fiscal” ao gosto do mercado e do consenso neolioberal. Já os tucanos aceitavam a redução da pobreza como meta primordial do Estado brasileiro. A situação produzia, na interpretação esperançosa de André Singer, um consenso suprapartidário capaz de durar décadas.
As manifestações de massa, com perfil heterogêneo e uma pauta por vezes difícil de discernir, que tomaram o Brasil em 2013 mostraram que uma fatia expressiva do eleitorado não estava tão contente com este arranjo.
À esquerda, muitos celebraram, julgando que era a hora da retomada de uma luta popular mais ofensiva e como um horizonte de transformação mais radical. Junho, escreveu no calor da hora uma observadora, a urbanista Raquel Rolnik, “fez renascer entre nós a utopia”. Hoje, a distância histórica, embora pequena, já permite estabelecer uma interpretação diferente: Junho foi o começo do fim.
(Utilizo “Junho”, com inicial maiúscula, para me referir aos eventos de 2013, e “junho”, com inicial minúscula, para me referir ao mês. Cumpre observar que, a rigor, os protestos vinculados ao transporte urbano começaram antes do mês de junho de 2013, com manifestações importantes em cidades do Nordeste, Sul e Centro-Oeste do Brasil. O rótulo “Junho” se firmou porque eventos de fora do Sudeste merecem reduzida atenção da mídia de massa e do governo central. Só quando as manifestações chegaram a São Paulo, sob influência, aliás, das experiências imediatamente anteriores de cidades como Natal, Porto Alegre ou Goiânia, gerou-se um “fato político” de alcance nacional.)
Junho, prossigo, foi o começo do fim. O fim do pacto promovido pelo lulismo, o fim da Nova República, o fim da vigência da Constituição de 1988, o fim do experimento liberal-democrático tal como o vivenciávamos no Brasil. Há uma linha traçada com absoluta clareza que começa em 2013, passa pelo golpe de 2016 e chega ao triunfo do bolsonarismo, nas eleições de 2018.
Aqui, é necessitário evitar qualquer mal-entendido. Junho não desencadeou processos que sem ele não existiriam; foi “o começo do fim” no sentido de sinalizar o esgotamento do modelo de organização da disputa política e das expectativas sociais que vigorava e, até então, parecia saudável. Com a consciência deste esgotamento, os agentes naturalmente são levados a mudar seu comportamento. Mas, exatamente por não ser o raio em céu azul, Junho deve ser entendido como parte de processos políticos que o precedem e o superam. É nesse sentido que leio a citação de Philip Roth, que abre este texto: o acontecimento histórico é aquele que expõe e cristaliza algo que já há tempos se gestava no mundo.