Na mente dos patrões
Natalia Beauty e “rei do ovo” ilustram mentalidade tacanha da burguesia.
Nos últimos dias, o leitor da Folha de S. Paulo teve oportunidades ímpares de ingressar num ambiente insalubre, mas que importa ser conhecido: a mente do patrão brasileiro. Duas figuras bem diferentes entre si, mas que encarnam a mesma ideologia e que, ainda mais importante, têm em comum a candura com que expressam as maiores atrocidades, apareceram no jornal expondo suas filosofias.
Uma foi a esteticista conhecida pelo codinome de Natalia Beauty. Famosa por cobrar milhares de reais para ajeitar – ou estragar, depende do ponto de vista – as sobrancelhas de suas clientes, se vende como um caso de superação. É a funcionária de um salão do interior que com o próprio esforço se tornou milionária, dona de um (modesto) império empresarial. Com isso, ela se credencia também para ganhar uns caraminguás como influenciadora, como coach motivacional. Mas não tem jeito dela abrir a boca sem resvalar para a escrotidão; ela parece congenitamente incapaz de sequer simular traços humanos como empatia e respeito pelo próximo, de tal forma que, imagino, seu público seja restrito a pessoas com características bem particulares (ou talvez, de forma mais direta, com um pezinho na sociopatia).
É o que se vê em sua coluna semanal na Folha, em suas entrevistas e também em suas não tão infrequentes aparições no noticiário policial, por fabricação e venda de medicamentos e cosméticos sem registro, sonegação fiscal e – obviamente – maus tratos aos trabalhadores. A coluna em que falou de IA, porém, teve um gostinho especial.
A frase de abertura nasceu para ser antológica. Sabem aquelas aberturas de grandes romances, que as pessoas citam de cor? “Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num monstruoso inseto”. “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía haveria de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo”. “Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”.
Pois é. Tem um lugarzinho nesta lista para: “Enquanto metade do mundo grita que a inteligência artificial vai tirar empregos, a outra metade, a que realmente trabalha, está respirando aliviada”. Afinal, prossegue Beauty, a IA não tira emprego de ninguém, apenas faz “o trabalho sujo que muitos líderes não tiveram coragem de fazer: eliminar o peso morto”.
Em poucas linhas, a “multiempreendedora” (sic) já delineia seu universo mental. Um mundo em que a mão-de-obra se divide entre aqueles que se dedicam a gerar mais lucro para o patrão e aqueles que podem ser definidos, sem rodeios, como “peso morto”. Em que são os patrões – “líderes”, não exploradores – que têm receio dos empregados. Em que este peso morto é o trabalhador e não o proprietário que vive da extração de mais-valor.
(Aliás, dos empregados, não. No linguajar de Beauty, só existe “colaborador”. É uma curiosa mistura de torpeza sem disfarce e apego a eufemismos.)
Daí para diante, é só alegria. O robô – isto é, a IA – é melhor porque “não enrola, não inventa desculpa, não fica se vitimizando por qualquer cobrança. Não reclama de segunda-feira, não some na hora do problema”.
Em suma, o robô não é gente. Gente é o problema, Beauty sempre soube disso. O fato de que com a força de trabalho vem um trabalhador – uma pessoa, com suas aspirações, seus interesses, seus conflitos, seu livre arbítrio, sua vontade própria.
O texto termina com aquela ideologia patronal padrão: empresa não é caridade, quem “vira custo” deve ser cortado, trabalhador que não rende está explorando o patrão, demitir para aumentar o lucro é questão de justiça. Mas, quase no final, vem outra pérola que mostra que nossa autora não perdeu a inspiração: “A IA não está matando empregos. Está matando a desculpa e a cultura da mediocridade protegida por um verniz de empatia fake”.
Por que a empatia com um funcionário que “rende pouco” é fake? Uma pergunta sem resposta. Mas, mais importantes ainda, são duas outras questões:
1) Quem diz que os postos de trabalho que estão sendo exterminados pela IA pertencem exclusivamente ou mesmo majoritariamente a trabalhadores menos competentes ou menos esforçados? Só a filosofia picareta de coach empresarial, que diz que se você não está bem no emprego a culpa é sua, pode chegar a esta conclusão.
2) Por que os funcionários considerados mais competentes são aqueles que não reclamam? Na verdade, tudo indica que é o contrário: Beauty gosta (e por isso atribui status de competente) de quem não reclama, não exige direitos, não se afirma, não enfrenta o patrão.
Tudo o que a maga dos supercílios falou ecoa de forma amplificada na outra figura que trago aqui: o sr. Ricardo Faria, conhecido como “rei do ovo”. Um dos homens mais ricos do Brasil, produz, segundo a Folha, 13 bilhões de ovos por ano – mas eu desconfio de que não seja ele que produz essa barbaridade de ovos e sim as aves de suas granjas.
O problema do Brasil, diz ele, é o Estado. Por exemplo, o Estado que dá o Bolsa Família e, com isso, faz com que as pessoas não queiram mais trabalhar.
Isto, convém anotar, é empiricamente incorreto. Os beneficiários do programa se esforçam por se inserir no mercado de trabalho, porque o que recebem é pouco. O que o Bolsa Família faz é reduzir sua vulnerabilidade diante de potenciais empregadores, permitindo que barganhem em situação um pouquinho melhor. Em suma, não são obrigados a trabalhar por qualquer coisa. É disso que Faria reclama.
Se não quisessem trabalhar mesmo, aliás, qual seria o problema? Por que o pobre não pode dispor de liberdade para definir como vai usar o seu próprio tempo? Mas esta é uma discussão um tiquinho mais complexa.
Em seguida, a entrevista nos explica que o Estado é problemático porque impõe direitos trabalhistas, como a limitação da jornada de trabalho. Bom é nos Estados Unidos, onde o sujeito trabalha “quantas horas quiser”.
E arremata dizendo que o trabalhador é oprimido por seus direitos. “Pergunta para o cidadão: prefere, cheio de direito, ganhar US$ 250 por mês ou, sem nenhum direito ganhar US$ 5.000 por mês?”
Engraçado. As pessoas não preferiam não trabalhar para ficar vivendo de Bolsa Família? Como, agora, elas preferem trabalhar muito para ganhar mais dinheiro? Parece que a lógica não é o forte do torturador de galinhas.
Parece, não: não é mesmo. Vejamos como ele explica a “máxima” que organiza sua empresa: “A pessoa AA [acima da média] contrata uma AA. A pessoa A contrata a pessoa A e a pessoa B, mais insegura, contrata a pessoa C. O B traz um cara mais fraco e acaba se sobressaindo. O puxa-saco não se cria. Se você quer ter um processo de crescimento rápido e um ambiente meritocrático, o grande desafio é se livrar do B.”

“Jenial”, não é mesmo?
Outro problema do Estado, claro, é cobrar impostos: “A carga tributária no Brasil é absurdamente alta, e o esforço que existe para a redução de custo da máquina pública é nulo” – a conversa de sempre. O próprio Faria anuncia, triunfante, que transferiu seu domicílio fiscal para o Uruguai, para sonegar em paz.
Mais para o final da entrevista, ele comenta a diferença da gripe aviária nos Estados Unidos, que levou ao abate de 50 milhões de aves, e no Brasil, onde foram sacrificadas apenas 16 mil. “O Brasil tem uma grande fortaleza sanitária.”
As repórteres não perguntam o óbvio: qual o papel do Estado na construção desta “fortaleza sanitária”.
Mas, como vimos, a lógica não é o forte do “rei do ovo”.
Professor, admiro cada dia mais a sua lucidez em apontar as incoerências nos discursos, inclusive da esquerda que, ao meu ver se perdeu totalmente. As próximas eleições infelizmente serão da direita - precisaremos muito de vozes como a sua para sobrevivermos ao caos de desinformação que nos espera.
Um ponto comum aos dois assuntos: a Folha de S.Paulo, jornal eternamente golpista.