Semana passada, Cacau nos deu um susto danado.
Cacau, pra quem não sabe, é o gato.
Algumas pessoas dizem que ele não é o gato mais bonito do mundo (eu discordo), mas ninguém resiste a seu charme e malandragem – se enroscando nas pernas, ronronando, pedindo colo. Por algum estranho motivo, ele gosta da convivência com esta espécie inferior: os humanos.
Ele apareceu um belo dia, no começo de 2014. Regina e eu abrimos a porta do elevador, aqui no sexto andar, e ele estava lá, pronto para nos adotar.
Correu para dentro de casa, deitou no sofá, e foi ficando. Conversamos com os porteiros dos prédios por aqui, ninguém tinha buscado um gato perdido. Assim, ele passou a residente permanente.









Desde então, é o gato aqui de casa. Ou melhor: nós somos os humanos da casa do gato.
Foi identificado primeiro como fêmea. Francisco, que estava com 12 para 13 anos e em plena fase de fascinação pela mitologia egípcia, quis dar o nome de Bastet. Uma complicação, ninguém entendia o nome. Basquete? Baguete? Quando constatado que era macho, virou Cacau.
Eu tinha proposto Adolpho, devido obviamente à cor do pelo dele – gato preto, black cat, black block, Adolpho Bloch, sacaram? Mas, de forma surpreendente, ninguém aprovou. Então ficou Cacau. Muita gente continua achando que é fêmea por causa disso, mas lembremos que cacau, o fruto, é um substantivo masculino.
Instalamos uma portinhola na porta da cozinha e Cacau entra e sai à vontade.
No começo, ele trazia oferendas – baratas, lagartixas, certa vez um morcego. Mas logo se sentiu dono da casa e felizmente largou esse hábito.
Pessoas que gostam de deitar regras anunciam que “gatos domésticos com acesso à rua têm expectativa de vida de três a quatro meses”. Pois Cacau está conosco há mais de onze anos.
É que a regra não olha as circunstâncias. Cacau veio da rua, não admitiria ficar trancado. Aqui na frente do prédio passa pouco carro. E formamos uma pequena comunidade, todo mundo zela por ele – e pelos outros gatos que vivem pela vizinhança, alguns dos porteiros, outros sem responsáveis definidos.
Problemas existem, claro. Uma vez foi picado por um escorpião, precisou de curativo, passou um tempo com um colar elisabetano. A gente se revezava para passear com ele quando ele queria descer, o que acontecia sempre às três da manhã...
Depois que se tornou um jovem senhor, Cacau ficou com preguiça de subir ou descer as escadas. São seis lances, afinal.
Quando quer sair, mia para um de nós levá-lo de elevador. Depois convence algum vizinho ou porteiro a subir com ele.
Como Cacau é doutor na arte de fazer amigos e influenciar pessoas, quase sempre arranja ajuda.
Caso não, fica esperando numa árvore ou na frente da porta do prédio até que alguém aqui de casa desça atrás dele.
Por ter acesso à rua, nunca usou caixa de areia. Só não posso dizer que não sei se ele faz mesmo as suas necessidades porque uma vez teve uma diarreia, saiu correndo e acabou fazendo cocô na porta de um vizinho insuportável, que vivia arranjando encrenca (e que não mora mais aqui).
Pelo senso de dever, mas também para evitar mais confusão com o tal vizinho, fui lá e limpei a caca. Mas gostei de ver a sutileza da escolha do Cacau.
A portinhola também pode ser usada por intrusos. Daí veio a segunda confirmação de que o gato tem intestinos. Certa manhã, ao acordar, encontrei a área de serviço e a cozinha reviradas. Tinha uma pera roída na fruteira. E da caminha do Cacau até a portinhola, um rastro de cocô.
Cocô do gato – prova de que ele tinha levado um susto daqueles.
Estava na cara: um saruê (também conhecido como gambá-de-orelha-preta) tinha entrado em casa.
Como o prédio é todo aberto e os saruês são ótimos escaladores, às vezes aparece um. E esse entrou pela portinhola.
Quando acordei, o saruê já tinha saído, senão Cacau não estaria tranquilo em casa. Verificamos se ele não tinha nenhum machucado (não tinha) e gastamos um tempão desinfetando o chão e os móveis onde o bicho podia ter subido (saruês transmitem leptospirose, mas fora isso são do bem e ajudam a controlar os escorpiões).
Parecia só mais uma aventura na vida agitada de Cacau.
Mais tarde, porém, conversando com o zelador, descobrimos que de manhã foi encontrado um saruê morto, bem na frente da nossa entrada do prédio, com sinais de que tinha caído de um lugar alto.
Caído... ou sido empurrado?
Deu um pouco de medo do gato. Mas ele em geral é de paz.
Neste tempo todo, Cacau basicamente só deu alegrias. Ajuda a gente a parar de trabalhar, pulando no colo e exigindo atenção. Distribui criteriosamente seu carinho entre todo mundo, para que ninguém se sinta enciumado.
Só não gosta quando viajamos. Na volta, depois de um momento de euforia, quando não sai do colo, ronrona ininterruptamente e baba um niágara, manifesta seu descontentamento com um gelo ostensivo, mas efêmero.
Na sexta da semana passada, Cacau não voltou do passeio noturno. Em geral ele chega cedinho, por volta das seis. Raras vezes depois das oito. Se ficou dormindo na casa de algum vizinho, talvez apareça um pouco depois. Mas sexta ao meio-dia ele ainda não estava em casa.
Andamos por todos os lugares, falamos com todo o pessoal das portarias, imprimimos um monte de cartazes e nada.
A preocupação era pelos motivos óbvios e também pela necessidade da medicação – o bichinho está com glaucoma e precisa pingar colírio várias vezes por dia.
Sábado de manhã, enfim, ele entrou na garagem do prédio, todo estropiado. Tudo indica que ficou preso em algum buraco e se machucou tentando se soltar. Mesmo assim, estava tentando subir as escadas para chegar em casa.
Precisou de uma cirurgia, ficou hospitalizado até terça e agora já está aqui, em recuperação.
Foi muito bem tratado, mas custou uma pequena fortuna. E os gastos continuam, com remédios, fisioterapias e adaptações na casa.
Fico pensando em todas as pessoas que não têm condições de arcar com os custos de um tratamento assim e que se desdobram para cuidar de seus bichinhos. Sim, claro que existem prioridades mais urgentes, mas são necessários hospitais veterinários públicos. Conviver com um animal de estimação não pode ser um privilégio de poucos.
Falei das adaptações na casa. Uma delas é um box novo para o banheiro.
Como Cacau não pode pular por algum tempo, enquanto está se recuperando, tem que ficar sob vigilância ou confinado. Preparamos uma suíte no box do banheiro, mas não é que o diacho aprendeu um jeito de passar pela porta, que já é bem velha?
Agora ninguém dorme de noite na casa. Estamos em processo acelerado de zumbificação, mas felizes porque o gato voltou a ronronar.
Não sabemos ainda exatamente como vai ficar a mobilidade dele. Cacau não é mais um garoto, por essas tabelas que a gente encontra na internet está beirando os 70 anos humanos. É provável que tenha que se adaptar a uma vida dentro do apartamento.
E, em algum momento em um futuro não muito distante, vai partir.
Eu nunca tive crença religiosa. Sempre achei a ideia de Paraíso particularmente desprovida de sentido. Afinal, qual ser humano que se credenciaria para uma vida eterna?
Vamos pensar: somos a espécie de Nero, Torquemada, Cortez, Hitler, Stálin, Idi Amin, Pol Pot, Pinochet, Sergio Moro, Carla Zambelli, Roger Moreira, Virginia Fonseca... Daí fica difícil, né?
Mas Cacau, gente, Cacau eu tenho certeza que já garantiu seu lugarzinho no céu dos felinos, por toda a alegria que distribuiu e continua distribuindo aqui na Terra.
Talvez o saruê discorde, mas não vou levar em consideração...
Que lindo texto! Cacau merece. Torcendo para que se recupere logo.E vc tem razão, ter bichos de estimação não pode ser um privilégio.
Ainda bem que ele voltou! Recentemente perdi um dos meus gatos, o Frido. Era o mais novo dos 5, o mais peralta e teimoso. Tá fazendo muita falta.