O fim da democracia deliberativa
A corrente que reinou por décadas na teoria política recuou à medida em que o conflito entre capitalismo e democracia se tornou mais agudo.
Quem acompanhou as publicações da teoria política dos últimos anos do século passado e das duas primeiras décadas desse sabe que o grande hit era a “democracia deliberativa”. Por duas vertentes diferentes, derivadas, uma, da obra de Jürgen Habermas, e, outra, da obra de John Rawls, chegava-se à percepção de que o momento central da democracia não era o voto, sim o debate – e que seu objetivo final seria promover consensos, nascidos de uma discussão livre e igualitária, em que predominariam os melhores argumentos.
Como se vê, é uma leitura da política atraente, mas que esqueceu as lições de Maquiavel. Que acredita que o conflito não é central para entendê-la, que “poder” não é seu conceito básico, que os interesses podem ser deixados de lado na interação dos agentes sociais. Que ignora o peso das instâncias de mediação (representação política, mídia), para abraçar uma concepção abstrata, inefável mesmo, do debate público. Que abstrai o mundo material em que as disputas políticas ocorrem.
Não é por acaso que a perspectiva deliberacionista ganhou tamanho prestígio, desbancando outras teorias críticas sobre os limites democracia liberal, exatamente no momento em que pareciam entrar em colapso todas as alternativas ao capitalismo.
Milhares de artigos e livros, em um punhado de anos, foram modificando o deliberacionismo, que paulatinamente abandonou seu irrealismo. Mas cada passo para longe da utopia o aproximava mais da legitimação do modelo vigente nos países ocidentais. Habermas, já no começo dos anos 1990, deu o sinal. Em Facticidade e validade (antes traduzido como Direito e justiça e às vezes referido pela tradução de seu título em inglês, Entre fatos e normas), ele trata a opinião pública como a fonte do poder político, num processo em que o público se manifesta por meio das eleições e o parlamento, responsivo a ele, decide levando em conta a sua vontade.
Aqui, a democracia deliberativa deixa de ser uma contestação para se tornar uma justificação da ordem liberal. Se a linguagen fosse mais clara, quem lê a narrativa de Habermas sobre o funcionamento das democracias representativas liberais podia achar que estava diante do texto de um Anthony Downs.

Com o passar do tempo, a corrente deixou de ser uma crítica filosófica aos limites da democracia liberal para se tornar uma matriz de engenharia institucional com vistas a seu aprimoramento. Sua voltagem crítica se reduziu, o que contribuiu para integrá-la no mainstream da Ciência Política.
O que atropelou a democracia deliberativa foi, como de costume, a realidade. O agravamento dos processos de desdemocratização mostrou quão nonsense era a aposta na produção de consensos pelo debate. O mundo selvagem das fake news nas plataformas sociodigitais e o vale-tudo da atual disputa política não deixam espaço para fantasias de acordos embasados nos melhores argumentos.
Eu perdi a conta de quantos textos escrevi e em quantas polêmicas me meti para criticar os pressupostos idealistas das teorias da democracia deliberativa1. Hoje, o debate não existe mais. Poucos de seus defensores fizeram algum tipo de autocrítica; a maioria simplesmente saiu do fininho e foi tratar de outras assuntos.
Creio que o canto de cisne das teorias deliberativas foi o livro de Hélène Landemore, Open democracy, publicado pela Princeton University Press em 2020. É um livro denso, sofisticado, bem construído – e profundamente equivocado.