Pitacos variados
A encruzilhada de Hugo Motta, a luta dos banqueiros contra o Pix, novamente a ladainha sionista – e, claro, a “comovente” incursão hospitalar de um ex-Beatle.
Os amottinados da Câmara
A bagunça bolsonarista na Câmara dos Deputados colocou Hugo Motta na sinuca de bico que aguarda todo oportunista profissional. A escolha é entre se posicionar ou se desmoralizar. Sendo que, ao não fazer nada, não apenas se desmoraliza como, na prática, se posiciona.
Afinal, a arruaça não foi apenas uma arruaça. Foi uma demonstração de que o ânimo golpista da extrema-direita continua aceso. A linha divisória está clara: quem defende a democracia e quem é contra ela.
Existem mecanismos regimentais que permitem a obstrução dos trabalhos por minorias parlamentares. Existem também demonstrações extrarregimentais que servem para pressionar as maiorias, que fazem parte do jogo democrático. A bagunça promovida no Congresso em defesa do líder golpista Jair Bolsonaro não se encaixa em nenhuma das alternativas.
Hugo Motta foi incapaz de dirimir o motim, precisando da intervenção de seu padrinho, Arthur Lira. Mesmo com ela, enfrentou dificuldades. Quando voltou a ocupar seu posto na mesa, revelou-se frágil, encurralado e pusilânime (leia aqui um relato do episódio).
Tudo foi uma demonstração veemente de que ele pode ser o presidente da Câmara, mas não tem ascendência na Casa.
A pacificação da horda bolsonarista já cobra um preço: a aprovação do projeto que leva os parlamentares à quase absoluta impunidade. A motivação principal nem é o golpe, é bem mais comezinha. Eles estão preocupados com as investigações sobre as emendas do orçamento secreto e querem se blindar contra qualquer possibilidade de responsabilização.
É a apologia da roubalheira, por uma elite política carente de qualquer resquício de vergonha na cara.
Hugo Motta pode tentar assumir a frente da manobra, numa tentativa fútil de voltar a se cacifar como liderança do corporativismo parlamentar. Ou, na direção contrária, poderia aproveitar que ela nasceu de um assédio à sua posição institucional e se distanciar dela. A segunda alternativa sempre foi, todos reconhecemos, improvável. Improbabilíssima.
Afinal, estamos falando de Hugo Motta.
E ele tem também que decidir sobre a punição aos arruaceiros – ele, que implantou um rito sumário para este tipo de situação, com objetivo declarado de limpar um pouco a imagem do Poder Legislativo.
Mas o rito sumário não está sendo aplicado no caso. Segundo o que a imprensa diz, Motta não conseguiu apoio da mesa diretora para ele.
Há muita gente para ser punida, com a suspensão de seis meses de mandato e, na verdade, até a cassação. A lista que foi enviada para a corregedoria da Câmara inclui a fina flor da truculência política nacional. Mas não há segurança de que nem mesmo aqueles que tiveram protagonismo mais evidente no motim venham a ser punidos por um conselho notoriamente desprovido de ética e por um plenário que se mostra disposto a abraçar o corporativismo mais mafioso.
Não é impossível um desfecho em que Nikolas Ferreira se safe e seja punida a deputada Camila Jara, alvo de uma acusação por todos os indícios falsa do próprio farsante mineiro, que se coloca como vítima e única testemunha de uma agrtessão implausível.
A manobra dele, ao acusar a deputada petista, não é ingênua. Faz uma equivalência malandra entre fatos facilmente comprováveis (a ação dos golpistas está ancorada em uma multidão de evidências) e uma acusação carente de qualquer materialidade.
O imbroglio está posto e no centro da cena está Hugo Motta, primeira vítima do motim e responsável maior por restaurar alguma ordem na Câmara dos Deputados.
Caso não trabalhe de forma clara por uma punição exemplar, o ilustre rebento de Patos (embora nascido em João Pessoa) não apenas confessará que é frouxo e demonstrará que não tem estatura para exigir respeito ao cargo que ocupa. Estará dando seu aval para o golpismo, assumindo com total clareza o lado em que está.
O capital contra o Pix
Na Folha de ontem, na seção de debates sobre temas atuais, um certo Luciano Benetti Timm assina um texto em defesa da resistência estadunidense contra o Pix – um dos pretextos para a imposição das tarifas contra o Brasil. Ele é apresentado como presidente da Associação Brasileira de Liberdade Econômica, da qual eu nunca tinha ouvido falar.
Fiz uma rápida pesquisa na internet. A associação tem uma webpage em que apresenta seu corpo dirigente, formado por um punhado de nulidades, e nenhuma palavra sobre seus financiadores. Ao que parece, segundo os resultados da pesquisa, ela surgiu no apagar das luzes do mandato de Bolsonaro, com o beneplácito do Ministério da Economia de Paulo Guedes, e sua maior façanha até agora foi entrar com uma ação para tentar reverter as multas que o Procon paulista aplicou a quem praticou preços abusivos durante a pandemia.
Acho que já deu para ter uma noção.
O sr. Timm explica o que pode estar errado com o Pix, que,
por ser uma solução gratuita, universal e estatal de pagamentos eletrônicos, representaria uma vantagem competitiva indevida, com impactos no comércio e na concorrência internacional, especialmente em relação a empresas privadas estrangeiras do setor financeiro e de tecnologia. A crítica principal, nesse caso, não reside apenas no fato de o Estado ser simultaneamente regulador e operador, mas sim no fato de atuar diretamente no mercado, com capacidade de absorver prejuízos e impor obrigações regulatórias que nenhum agente privado seria capaz de igualar.
O autor simula certa neutralidade, como se apenas estivesse sintetizando as preocupações trumpistas (no movimento, concedendo a elas uma legitimidade renovada). Mas no final assume posição: “Independentemente dos desdobramentos da investigação, o episódio levanta questionamentos importantes sobre o modelo de organização institucional do mercado de pagamentos no Brasil”.
Eu poderia dizer que o mesmo argumento serviria para impugnar o monopólio estatal de emissão de moeda. Mas é melhor ir direto aos fatos.
O Pix, segundo estimativa divulgada recentemente, já gerou uma economia de mais de R$ 100 bilhões de reais – em taxas de transferência bancária e de cartão de crédito que consumidores e comerciantes deixaram de ter que pagar. Nada disso encontra eco no coração do defensor da “liberdade econômica”.
É história velha. Quando a inovação tecnológica retira autonomia e aumenta o ritmo do trabalho ou elimina empregos, ela é inevitável e lutar contra é tentar impedir o “progresso”. Mas quando uma parte da conta é paga pelo capital, daí a coisa muda de figura e ela pode ser barrada em nome de “valores” mais elevados.
No caso, o direito sagrado que as empresas do setor financeiro têm de arrancar dinheiro de todo mundo.
O sionismo na berlinda
Mas ontem a seção “Tendências e debates” da Folha estava particularmente infeliz. Abaixo do paladino dos lucros de Visa e Mastercard, uma colunista do próprio jornal veio reapresentar o fantasma do “antissemitismo crescente”.
O truque é o de sempre: usar a cartada do antissemitismo para impugnar o antissionismo. Como se fossem coisas equivalentes ou mesmo contíguas.
Antissemitismo é o ódio dirigido aos judeus por serem judeus. É uma forma de racismo.
Antissionismo é a oposição ao empreendimento colonial de Israel na Palestina, que causou e continua causando sofrimento, privação de direitos, miséria e morte a todo um povo. É uma forma de humanismo.
Há muitos antissionistas que não são antissemitas, muito pelo contrário. Para começar, há um enorme contingente de judeus que se coloca contra Israel e seus crimes.
E há também antissemitas que são pró-sionistas. Vemos hoje a simpatia de muitos neonazistas pelo Estado de Israel – alguns deles são recebidos com festa em Telavive, recepcionados por Netanyahu. Desde seus primórdios, aliás, o movimento sionista contou com o patrocínio de líderes europeus antissemitas, que queriam expulsar os judeus de seus territórios.
O que ocorre hoje é que o genocídio cometido na Faixa de Gaza tem ampliado a repercussão da mensagem antissionista. Como é difícil reagir a isso, coloca-se tudo na conta de um pretenso antissemitismo.
É o estratagema de Becky Korich, a tal colunista da Folha. Ela diz que o antissemitismo está mais ativo hoje, mas não oferece um único exemplo concreto. Só diz que ele se disfarça em apelos por justiça e em manifestações de indignação pela carnificina em Gaza.
Não que use palavras tão contundentes ao falar da mortandade no enclave palestino. Tentando se proteger das críticas óbvias, diz que “denunciar o antissemitismo não é negar a dor dos palestinos”. Mas a palavra “genocídio” não consta do texto, nem “limpeza étnica”, “massacre'“, “morticínio”. Nada disso. Classifica (corretamente) de “matança” a ação do Hamas, em 7 de outubro de 2023, quando morreram pouco mais de mil pessoas (boa parte delas, já se sabe, por obra do exército israelense). Já os mais de 60 mil palestinos mortos até agora, segundo estimativas conservadoras (e contando), ficam resumidos a uma “dor” abstrata.
Da mesma maneira, a articulista reconhece que não é proibido criticar o governo de Israel. Mas logo acrescenta que “a crítica se torna perigosa quando vira negação sistemática do seu direito de existir”.
Ela não explica onde está a linha divisória. Nem poderia – e é por isso, também, que é incapaz de apresentar exemplos que sustentem seu ponto. Praticamente toda a gritaria sobre aumento dos casos de antissemitismo, no Brasil como nos Estados Unidos ou na Europa, se baseia na contagem de críticas a Israel e ao caráter criminoso do sionismo como se fossem manifestações antissemitas.
Mas vou além: por que Israel tem o direito de existir? Por que a permanência de um enclave colonial, produzido por meio da violência sistemática contra a população local, que inclui roubo de propriedades, exploração do trabalho, negação de direitos, prisão, tortura e morte, uma violência que é originária e que se perpetua até hoje – por que a existência deste Estado deve ser vista como inatacável?
Paul McCartney no hospital
A febre da vez são as imagens “comoventes” da jam session de Paul McCartney com o moribundo, mas supreendentemente ativo, Phil Collins, em algum hospital londrino, coadjuvados por um coro de médicos e enfermeiros de dentes perfeitos e olhos marejados. Tudo acompanhado, é claro, de um texto igualmente piegas, falando de amizade, aceitação, redenção, as patacoadas de sempre.
Existe um efeito narcótico das mídias sociais que faz com que muita gente normalmente dotada de senso crítico caia feito um patinho. Acredita, compartilha e se emociona, seja com os velhos roqueiros fazendo uma pontinha em Grey’s anatomy, seja com as criancinhas pobres tão criativas elaborando obras-primas de sucata com suas mãos nuas de numerosos dedos, seja ainda com os passarinhos multicoloridos e de aerodinâmica improvável que falam da “grandeza da obra de Deus”.
O que pega mesmo é o “se emocionar”. São imagens e textos planos, carentes de tensão, óbvios, bregas até o tutano.
Mas parece que é isso, que dentro de cada um de nós há uma pulsão pelo Kitsch que tentamos controlar com nosso frágil verniz de sofisticação estética, mas que sempre espreita, pronta para atacar. As ferramentas informatizadas de plágio e de logro, conhecidas pelo nome fantasia de “inteligência artificial”, lá se instalam e de lá nos devoram a todos.
É inacreditável tudo que assistimos nos últimos tempos. Parece que a cada semana piora... Relendo o livro "Brasil: uma biografia", relembrei como nossa história é permeada de golpes e tentativas ininterruptas de sufocar nossa frágil democracia.
Sem comentários. Você sintetizou tudo e mais um pouco da realidade. Parabéns pelo texto