Pitacos variados
As ilusões da esquerda putinista, o cerco de Trump contra o Brasil, o triunfo da reação boliviana, o genocídio incessante em Gaza, a direita abraça a pedofilia – e uma questão para os cirandeiros.
Maniqueísmo 180°
A sequência de encontros de Donald Trump, primeiro com Vladimir Putin no Alaska e em seguida com Volodymir Zelenski na Casa Branca, deixou um saldo claro: a agressão russa será recompensada e a Ucrânia vai perder uma parte de seu território.
Não é uma boa notícia, muito pelo contrário. Não vou embarcar nas comparações apressadas, que fazem de Trump o novo Neville Chamberlain – o primeiro-ministro inglês que fez concessão após concessão a Hitler, notavelmente deixando-o tomar conta dos Sudetos (região tcheca com grande população de origem alemã), na esperança de apaziguá-lo e evitar uma guerra. As circunstâncias são outras, as personagens são outras.
Mas nunca é uma boa ideia alimentar o expansionismo territorial de qualquer potência ou premiar quem inicia uma guerra de conquista.
Ainda assim, não falta, na esquerda brasileira, quem esteja comemorando. É um grupo eclético, que une “sofisticados” analistas amadores de geopolítica a gente tão desavisada que ainda não se deu conta de que a Rússia não é mais a União Soviética.
Todos têm em comum o maniqueísmo exacerbado e o deslumbramento diante da figura do “homem forte”, que Putin encarna. E são também, sempre, nostálgicos do stalinismo, daquele tipo que acha que o sofrimento das vítimas é o preço inevitável da história e que lamentá-lo é uma demonstração de fraqueza pequeno-burguesa.
Há quem diga que a invasão russa foi um movimento de defesa, não de agressão. O nome científico desta afirmação é “mentira”. Mesmo que se queira justificar a ação russa como causada pelo receio de que a Ucrânia se juntasse à OTAN, coube a Moscou, não a Kiev, iniciar a agressão.
Há quem diga que tudo o que se faça contra os ucranianos se justifica porque Zelenski é um fascista. É mais complicado que isso, mas, sim, Zelenski é um direitista, um oportunista, um autoritário, não é flor que se cheire. Mas nisso apenas empata com Putin, cujo pezinho no fascismo é bem evidente.
Além de que, obviamente, um povo não é seu governante.
Cheguei a ver uma análise que dizia que a invasão correu exatamente como planejado por Putin, pois o “jeito soviético” não é a blitzkrieg, mas uma campanha longa, desgastante, que custa muitas vidas. O que, além de andar na contramão da lógica mais elementar, exige ignorar os fatos.
Enfim, já sabemos disso: negacionismo e fake news não são privilégio da direita.
Como apontei, o maniqueísmo cumpre um papel importante neste universo mental. Não gostamos dos Estados Unidos, os Estados Unidos não gostam de Putin, logo Putin é nosso abiguinho.
Tanto quanto ou até mais do que a ilusão da continuidade soviética, isto conduziu à simpatia de gente à esquerda pelo ocupante do Kremlin. Além, claro, do seu jeito frio e inabalável, sempre exaltado em tons grandiloquentes. É um pessoal capaz de acreditar que ele realmente cavalga ursos.
Mas agora a devoção por Putin se tornou tão grande que sua amizade com Trump gera simpatia pelo parlapatão de Washington. Enrubesci de vergonha alheia, lendo textos sobre a linda amizade que os dois grandes líderes demonstraram no Alaska e como o futuro se mostra alvissareiro graças à sua cooperação.
A lógica do maniqueísmo girou de tal maneira que fizemos o inimigo do nosso inimigo virar nosso amigo e, agora que eles se reconciliaram, temos que ser amigos do ex-inimigo que é amigo do nosso amigo!
Falta um tanto de régua moral e falta também estrutura para entender um mundo que não apenas não se divide entre bandidos e mocinho como, cada vez mais, parece disputado por bandidos contra bandidos.
E falta também senso das coisas. Como se diz por aí: a burrice nunca é boa conselheira.
Trump quer sangue
O difícil é aplaudir Trump como grande estadista quando esquarteja a Ucrânia – minerais de terras raras para ele, Donbass para Putin – e condená-lo quando tenta ser o salvador de Bolsonaro. Mas nada que uma boa compartimentalização mental não resolva.
Enquanto isso, os Estados Unidos se mostram dispostos a dobrar as apostas contra o Brasil. Trump repete as mentiras sobre a balança comercial e mostra zero abertura para qualquer negociação. As sanções contra as pessoas ligadas direta ou indiretamente ao Programa Mais Médicos, incluindo uma criança (a filha do ministro Alexandre Padilha) são significativas da disposição por uma escalada de agressões.
Pode ser efeito do lobby de traição nacional comandado por Eduardo Bolsonaro. Pode ser que Trump veja em Jair o destino que ele poderia ter dito, caso as instituições dos Estados Unidos não fossem tão frágeis, e tente exorcizar seu medo com exibições de força. Pode ser a necessidade de proteger as empresas de seus amigos, as big techs. Pode ser o sentimento renovado de que é somos seu quintal. Pode ser porque ele precisa de algum país para servir de exemplo e escolheu o Brasil, que é grande, mas vulnerável. Pode ter ficado melindrado com Lula, cuja gestão merece muitas críticas, mas que se mostra altivo nas questões de soberania nacional.
Provavelmente, é um pouco de cada coisa.
O fato é que a tensão se aprofunda. Não existe hipótese de reverter o julgamento dos golpistas por causa de ameaça estrangeira. O influenciador Felca prestou um serviço ao país e, com eles, complicou ainda mais a situação das plataformas. Lula não dá nenhum sinal de que vai se curvar.
Para complicar, Flávio Dino disse o óbvio – leis e decisões judiciais e políticas de outros países não se aplicam no Brasil –, colocando pressão sobre bancos e operadoras de cartão que já se assanhavam para aplicar, aqui, as sanções determinadas lá contra Alexandre de Moraes.
É o óbvio, o óbvio ululante, mas incomodou gente como Joel Pinheiro da Fonseca, que escreveu na Folha um texto cujo sentido pode ser resumido na frase “soberania é bacana, mas agradar os bancos estadunidenses é melhor”.
Incomodou o “mercado” também, que reagiu com suas chantagens habituais: dólar em alta, bolsa em queda.
Não importa de que a tentativa de Trump, de pintar o Brasil com as cores de uma ditadura, quiçá um rogue State, seja desprovida de qualquer fundamento. Seu modus operandi sempre é usar a ameaça no lugar do argumento. Assim, até o rompimento de relações diplomáticas não pode ser descartado.
Seria um belo momento para unir o Brasil em torno de um projeto de desenvolvimento soberano. Pena que a gente tenha uma elite tão entreguista, uma classe política tão pusilânime e tantos quintas-colunas entre nós.
O fracasso da esquerda boliviana
Depois de quase vinte anos ininterruptos de poder (com exceção do breve interregno golpista de Jeanine Áñez, entre 2019 e 2020), a esquerda boliviana sofreu um fracasso eleitoral retumbante.
Está fora do segundo turno. Seu candidato melhor colocado ficou em quarto lugar, com pouco mais de 8% dos votos. O candidato da situação, escolhido quando o presidente Luis Arce desistiu de concorrer à reeleição, mal chegou a 3%. Mesmo que se considere que todos os votos nulos responderam ao apelo de Evo Morales pelo boicote à eleição, são outros 17%. Tudo somado, a esquerda boliviana não chega a 3o% do eleitorado.
Maior partido do Congresso boliviano, o Movimento ao Socialismo (MAS) deve fazer agora apenas um deputado.
Há muitas razões para este fiasco. As duas mais óbvias estão interligadas: a péssima avaliação da gestão de Arce, incapaz de enfrentar a crise econômica, e o personalismo que levou à disputa fratricida entre as lideranças do MAS, que se fragmentou em grupos rivais. (Estão interligadas porque o governo Arce foi bombardeado sistematicamente por gente de seu próprio campo.)
O personalismo é um dos grandes vilões na busca pela implantação de qualquer projeto político transformador. A ambição pessoal desenfreada, a busca por fazer uma carreira política, a necessidade de estar à frente dos cargos de maior visibilidade, a competição por espaço que leva em primeiro lugar a boicotar quem está em posição próxima – todos estes incentivos nefastos atingem também a direita, claro, mas seu efeito paralisante ajuda a manter o status quo. O resultado líquido negativo é para a esquerda.
Claro que isso não explica tudo. A crise econômica de hoje é fruto de erros estratégicos ao longo de todo o ciclo de governos da esquerda, que não combateram a dependência da economia boliviana em relação ao gás. E, ao mesmo tempo, segundo gente que entende do assunto, não cuidou adequadamente das reservas de gás natural.
Ainda assim, é chocante que a população que teria sido protagonista de um dos maiores experimentos de democratização das instituições políticas da história vote em massa em candidatos inequivocamente alinhados à direita.
Ou será que é porque é mais fácil colocar “plurinacional” no nome do país do que mudar a fundo a distribuição do poder? Não sou especialista na política boliviana, mas sempre penso que personalismo galopante não combina com educação política real e efetiva participação pela base.
Israel quer sangue
Aparentemente, a pressão internacional sobre Israel aumenta. Até a Alemanha, com sua eterna consciência pesada devido aos crimes do nazismo, anunciou uma moratória na venda de armas para o Estado sionista.
Enquanto isso, o genocídio prossegue. Não, pior: se intensifica. Netanyahu anunciou (e já começou a colocar em prática) o plano de varrer a Cidade de Gaza do mapa e de tomar conta de todo o território do enclave. O assassinato de jornalistas prossegue. E de médicos. E de crianças.
Em suma: parece que a pressão não está funcionando. As palavras de França, Reino Unido, Canadá, pesam pouco diante do apoio inquebrantável dos Estados Unidos.
Precisamos de mais do que palavras. De nada adianta Lula fazer belos discursos em solidariedade ao povo palestino, quando o petróleo brasileiro continua alimentando o genocídio.
A direita desvela seu amor pela pedofilia
Felca tirou a máscara da direita brasileira. A gente já sabia que seu amor pela infância nunca passou de fachada. Não é possível defender políticas contra a educação e a saúde públicas e ser a favor das crianças. Não é possível querer que meninas sejam mães e ser a favor das crianças.
Agora, os bolsonaristas querem obstruir a votação do PL 2628, prevista para hoje – o projeto que combate a “adultização” nos ambientes digitais e cria mecanismos para impedir que predadores como Hytalo Santos se criem.
O homicida Marcel van Hattem, líder do Novo, falou que não pode ser a favor de “censurar a população brasileira”, fingindo que não sabe que regulação não é censura – e que as big techs não são “a população brasileira”.
Mas o melhor veio de Caroline de Toni, a líder da minoria na Câmara. Segundo ela, reconhecidamente uma pessoa que navega no patamar intelectual médio do bolsonarismo, a exploração sexual de crianças “é um problema que independe de regulamentação, que independe de lei, são os pais que deveriam proteger os menores e deixam eles (sic) com livre acesso [à internet]”.
Claro, porque o Estado não tem nenhum dever de zelar por sua população, muito menos pelas crianças. E os pais (muitas vezes uma mãe solo), trabalhando de sol a sol para colocar comida na mesa, vivendo na precariedade, estão mesmo disponíveis para controlar os filhos 24 horas por dia.
É a versão digital daquela ideia da direita de que, em vez de adotarmos políticas de segurança pública, cada um compre sua arma.
A morte de Sther
Mas devemos ser justos: também tem uma parte da esquerda cujo compromisso com crianças e jovens pára quando começa a lacração.
É a parcela da cirandagem que insiste em glamurizar o crime, que vê o milionário Oruam como uma pobre vítima do sistema, que acha que é preciso dialogar com as facções do tráfico para que elas adiram à revolução, que julga que os bailes funk, uma vez que são alvo de preconceitos e perseguições, são isentos de problemas.
Eu me pergunto o que eles diriam à jovem Sther Barroso dos Santos, de apenas 22 anos, retirada do baile e morta a pauladas por integrantes do Terceiro Comando Puro depois que se recusou a fazer sexo com “Coronel”, um dos chefes do bando.
Não é difícil ver que as facções e as milícias impõem novas opressões às populações que estão submetidas a elas. Não aliviam, mas somam-se àquelas derivadas do capitalismo, do sexismo, do racismo.
É fácil ver. Só não é lacrador.
Bom dia Luís, tuas análises fogem da percepção que os noticiários patrocinados querem nos impingir. Parabéns pelo teu trabalho. Fraterno abraço
Excelente texto, obrigado.