Precisamos da “lista negra” de palavras?
O veto a palavras e expressões, em geral com base em etimologias fantasiosas, virou o esporte de uma esquerda autofágica.
Uma das coisas que mais me irritam, no admirável mundo novo da cirandagem, é a polícia vocabular.
Volta e meia, alguém inventa de lançar uma lista de palavras vetadas, julgando estar dando uma contribuição à luta antirracista, anticapacitista ou o que for. Lembro da defensoria pública baiana, que interditou de “criado-mudo” a “escravo”.
O veto a “criado-mudo” tem base numa etimologia sem pé nem cabeça, inventada numa campanha publicitária, remetendo a uma história absurda.
Já a palavra “escravo” essencializaria a condição do cativo, sendo necessária substituí-la por “escravizado”. Mas aqui se revela uma compreensão bizarra do funcionamento da linguagem.
É uma espécie de cartesianismo linguístico, similar ao de quem quer abolir “risco de vida”, porque o risco é morrer, ou “gol de bola parada”, porque a bola precisa estar em movimento para entrar no gol. Como se falantes e ouvintes não fossem capazes de construir, pelo uso, o sentido das expressões.
O linguista Sérgio Rodrigues chama isso de “podolatria da letra”: o fetiche por se manter ao pé da letra.
Um cartesianismo ainda mais estranho porque partindo de gente que, em geral, prega epistemologias “decoloniais” não eurocêntricas.
E, caso fosse assim, o operário teria que ser “operarizado”, pois ser explorado não define sua essência como ser humano. O bolsonarista viraria “bolsonarizado”, já que sua adesão à extrema-direita não está marcada na genética, mas é fruto de processos sociais. E assim por diante.

Outras palavras e expressões vetadas remetem a origens hoje já completamente esquecidas – mesmo aceitando que as narrativas explicativas são verdadeiras, o que está longe de ser pacífico. Ou alguém que fala “de meia tigela”, “feito nas coxas” ou “a dar com pau” está remetendo à escravidão?
É aquela crença numa espécie de homeopatia etimológica. Tal como nas beberagens do dr. Hahnemann, os sentidos originais das palavras continuariam operantes e potentes, mesmo depois de séculos sendo apagados pelo uso.
Se fosse assim, seria impossível falar. A língua é atravessada por preconceitos, crenças falsas, hierarquias sociais.
Mas as palavras se emancipam de suas origens. Teríamos que recusar até “vacina”, já que a palavra, paradoxalmente, se associa ao gado – exatamente aqueles que resistem a ela!
Posso falar em desastre se não acredito em astrologia? Posso falar em família se sou contra a escravidão? E em trabalho se não admito tortura? Posso envenenar sem render culto à deusa do amor? É possível foder sem usar uma pá? Vegetarianos podem mandar spam? Posso escapar se não uso capa? E se eu quiser mergulhar na piscina e não tiver peixes?
Eu me pergunto qual é o ganho de recuperar sentidos que o uso apagou. Para além de seu uso especializado, a etimologia era uma diversão de salão. Eu, Luis, podia espantar os convivas chamando um Clóvis de “meu xará”.
Agora, tornou-se uma fábrica de tretas.
O lance é catar na fala do outro a palavra proibida e cair matando. Não é diferente da “moderação” das redes sociais (quando existia), igualmente incapaz de ler contexto, que opera pela busca de palavras específicas (e, claro, dos perigosos mamilos femininos).
Não importa se você está criticando ou fazendo apologia do discurso de ódio – tem que escrever “n4z1smo” em vez de “nazismo”, para não ser suspenso. Não importa se é pornografia ou educação, desde que escreva “s3xo” em vez de “sexo”.
É uma pseudomoderação, cujo objetivo é apenas simular algum tipo de preocupação com os conteúdos difundidos. A patrulha linguística “progressista” também. Não importa o que você fala, só a minha lacração.
Enquanto isso, Patricia Hill Collins continua usando o verbo “denigrate” sem nenhum pudor. Imagino que não seja o caso de cancelá-la – ela, que se tornou um ícone do feminismo negro, reverenciada mesmo por muita gente que nunca a leu.
Em Black feminist thought, seu livro mais conhecido, a palavra aparece já no terceiro parágrafo. E permanece lá, ao longo das edições revisadas.
Tive a curiosidade de buscar a tradução brasileira. “Societally denigrated categories”, que está já no prefácio, virou “categorias socialmente preteridas”, o que, francamente, não tem o mesmo peso. Pelo livro afora, todas as vezes, sem exceção, a palavra foi modificada na tradução.
É uma pena, porque seria interessante exibir uma estratégia diferente. Em vez de recuperar o pretenso substrato racista da palavra, tornando-o ativo diante do público, a fim de estimular sua má consciência – em vez disso, aceitar o processo de neutralização do sentido originário e, assim, focar as energias em outras coisas. Mais difíceis de serem enfrentadas, mais espinhosas, mas também provavelmente mais importantes.
Ouvi dizer que, na Universidade Federal do Espírito Santo, uma comissão de ética mandou a professores e servidores técnico-administrativos a listagem de termos que deviam ser substituídos. Incluía trocar “careca” por “deficiente capilar”. Garantiram-me que é de verdade, mas acho que é zoação. Só pode.
“Pobre”, por sua vez, viraria alguém com “hipossuficiência econômica”. (O pudor de chamar o pobre pelo nome, substituindo a palavra por eufemismos que, eles sim, podem ser considerados ofensivos, como “humilde” ou “desprivilegiado”, é apenas a marca da má consciência de uma classe média acomodada à desigualdade social. Mas esse é tema para outra conversa.)
No caso, o problema não é a etimologia, mas o sentido pejorativo das palavras. Como se o veto mudasse alguma coisa na vida do calvo. Como se parar de ser chamado de “pobre” colocasse comida na mesa de alguém.
Uma derivação disso é a moda de publicar livros cortando expressões “incorretas”. Agatha Christie e Roald Dahl são alguns dos autores a quem se aplica a medida. É extirpado tudo o que se pode considerar racista, misógino, capacitista, homofóbico, gordofóbico – no olhar do narrador ou das personagens.
É tipo um “protocolo Bridgerton de combate às discriminações e opressões”: fingir que elas nunca existiram. (Assim como, no seriado, a monarquia de uma potência colonial é tão lindamente diversa e inclusiva.)
Uma solução fácil. A pessoa se atualiza na lista dos termos cancelados, sai dando de dedo em todo mundo e, quando ser olha no espelho, vê um paladino do bem.
Bem mais fácil do que situar historicamente, fomentar a reflexão crítica dos leitores e entender que o combate às opressões exige mudança das estruturas, não um índex de palavras proibidas.
Caramba! Estava pensando nisso semana passada. Numa luta de jiujitsu, disse que fulano tinha "judiado", muito de mim. Na hora, me contive e me detestei mentalmente (tenho um passado muito na polícia vocabular, quem, """de esquerda"""", nunca? kkkk). Enfim, logo fiquei me perguntando se todo esse nosso ímpeto de uma justiça social (que a gente acha que só vai ser alcançada pelos nossos meios, enquanto os outros são todos fascistas) não é também um revisionismo linguístico super perigoso. Os exemplos do seu texto são claros: as palavras se deslocam de seus significados e adquirem novos, se complexificam, se sintetizam ou se esvaziam completamente (vide o "empoderamento", que hoje significa praticamente quem pode consumir mais). Este é o processo orgânico de qualquer língua (quer queiramos ou não). Abolir o "judiar", talvez não seja reparar ninguém e nenhuma dívida histórica, pelo contrário, pode até nos levar a uma cegueira. Sendo bem sintética, acho que esse afã por cancelar palavras leva muitas vezes a gente pra uma negação do pensamento complexo. O burguês de hoje obviamente não é o mesmo da revolução francesa. No entanto, a palavra permanece aí. Na música pop ou em qualquer esquina (ok, não em qualquer uma, mas em muitas) e não gera desconforto nenhum. E precisamos ir além? Vamos falar do delírio da linguagem neutra? Talvez a mais autoritária, artificial, nonsense, elitista e paradoxalmente exclusivista dos batalhões da linguagem? No need, é revoltante demais.
Houve um momento, entre 1970 e 1990, que o Foucault e o Derrida trocaram farpas publicamente por conta de uma visão diferente em relação a como a linguagem e o poder (para Foucault) e a violência (para Derrida) operavam.
Derrida defendia uma visão heideggeriana da história e da historicidade, considerando que a "história" é sempre história das "metáforas", história da etimologia "apagada", "esquecida", mas sempre vigente, dos sentidos (junto a isso, há a tese trivial de Derrida de que TODA representação é violenta, sem exceções, retomada de forma acrítica por Butler, Spivak, etc.); Foucault fazia a leitura pragmática da linguagem, justamente para demonstrar que havia cortes, divergências entre práticas não-discursivas (que depois ele chama de "relação de poder") e sentidos linguísticos (significações, etc.), demonstrando que o poder não é necessariamente discursivo, nem tem fundamento semiótico (Foucault também não fala de violência, fala de poder, justamente para problematizar a visão trivial e jurídica de Derrida sobre violência, que ele julga muito marcada pela ética judaica-cristã).
Acabou que com o sucesso global da desconstrução em França e nos EUA, especialmente com Butler e os estudos críticos da raça, e com a proliferação do termo "estrutural" para explicar tudo e qualquer coisa, essas leituras derridianas e desconstrutoras se popularizaram, se transformando em polícia (no sentido preciso que o Rancière dá a esse termo, opondo-o à política). A visão mais pragmática de Foucault ficou esquecida, embora Foucault seja muito citado nesse meio (de maneira imprópria, na maior parte das vezes). Foucault diz várias vezes que existem relações entre discurso e poder, mas que o poder não é intrinsicamente linguístico, estrutural, semiótico, etimológico, etc.
No debate público, essas nuances de um problema sério são completamente desconsideradas, e o termo "estrutural" já é tratado, a despeito da intenção crítica original do estruturalismo, sob o ponto de vista dogmático. Especialmente, o texto de Spivak contra Foucault foi catalisador desse processo (fez parecer que a desconstrução e a semiótica estavam do lado das minorias, e que Foucault era positivista, estava do lado do capital, do neoliberalismo... Enfim, essas besteiras.)
Seria preciso retomar seriamente a história desse antigo debate, reabrindo a questão... mas tenho pouca fé de que seja possível no estado atual das coisas. Te acusam de tudo: revisionismo, racismo, antissemitismo, etc. Só não respondem aos argumentos. É mais fácil denunciar que todo mundo é violento em qualquer situação, rezando para um poder maior (polícia, direito, delegacia...) resolver as coisas, do que problematizar politicamente uma doxa que tem consequêncais sérias para os laços sociais, para a política.
ps.: última vez que quis discutir isso academicamente, criticando as teses de Derrida, me chamaram de "racista" e "antissemita" por Derrida ser africano e judeu... esse é o nível do debate hoje: você faz a crítica de uma teoria, e eles usam a teoria que você está criticando para te "enquadrar" como objeto de intervenção policial, e não para debater com outro sujeito do conhecimento que pode estar certo ou errado, que pode saber mais ou menos, etc.