Amanhã não existe ainda

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Vargas Llosa: gênio e canalha

Vargas Llosa: gênio e canalha

O “marquês” que morreu ontem bem merece ser esquecido, mas o autor de Conversación em La Catedral permanecerá.

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Luis Felipe Miguel
abr 15, 2025
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Vargas Llosa: gênio e canalha
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Eu devia ter 19 ou 20 anos quando embarquei na fase da literatura hispano-americana. Acho que comecei com Gabriel García Márquez, como todo mundo, e me apaixonei por seus livros (ainda que hoje ele esteja bem longe de ser um dos meus autores prediletos). Depois veio Cortázar, que continuo achando genial – se me pedirem uma lista dos meus dez contos preferidos, acho que pelo menos cinco serão deles. Depois, um monte de gente, de roldão: Borges, Sábato, Rulfo, Carpentier, Benedetto, Benedetti, Fuentes, Quiroga, Marechal, Cabrera Infante, Asturias, Onetti, Arlt... Mas os dois autores que entraram definitivamente no meu panteão pessoal foram José Donoso, um chileno, menos conhecido por aqui do que deveria, autor de ao menos dois romances imprescindíveis (El obsceno pájaro de la noche e Casa de campo), e Mario Vargas Llosa, que faleceu agora aos 89 anos de idade.

Vi muita gente boa manifestando sua ojeriza por Vargas Llosa, por conta de suas opções políticas. Uns dizendo que não conseguem lê-lo; outros, forçando a barra, que era um escritor medíocre. Pois eu (neste caso, não em todos) separo o criador da obra.

No momento em que comecei a lê-lo, Vargas Llosa já tinha se tornado um liberal com inclinações conservadoras. Segunda a narrativa que ele mesmo difundia, o que o fizera abandonar as ideias de esquerda foi a decepção com a Revolução Cubana, em particular a perseguição ao poeta Heberto Padilla.

Mas muita gente se decepcionou com a démarche autoritária da Cuba pós-revolucionária, sem por isso se tornar direitista hidrófoba.

Com o passar do tempo, Vargas Llosa piorou. Quando foi candidato à presidência do Peru, apresentou um programa que apontava para o retrocesso social mais profundo. Era o período de euforia neoliberal que se seguiu à queda do muro de Berlim e ele se mostrava um aplicado defensor das reformas privatizantes, da redução do Estado e, em suma, de deixar os trabalhadores e os pobres ao deus-dará, bem ao estilo de sua ídola Margareth Thatcher. Foi derrotado, mas nem isso foi uma boa notícia para o Peru: o vencedor foi Alberto Fujimori, um oportunista autoritário e corrupto, que assim que teve oportunidade deu um golpe para implantar uma ditadura pessoal.

Vargas Llosa se exilou em protesto, mas no futuro se aliaria a Fujimori para tentar impedir a vitória de um candidato de centro-esquerda. Como tantos direitistas empedernidos, ele enchia a boca para exaltar o predomínio do mercado em nome da “liberdade”, mas estava sempre a postos para apoiar qualquer autoritário que defendesse menos impostos para os ricos e mais porrada nos trabalhadores. Apoiou a candidatura de Jair Bolsonaro no Brasil e de um pinochetista no Chile.

Desceu tanto que, naturalizado espanhol, ganhou o título de “marquês” do então rei Juan Carlos II, antes que o monarca abdicasse do trono, envolvido em maracutaias cabeludas. Como é que um intelectual pode ser marquês, em pleno século XXI? É difícil imaginar uma coisa mais ridícula.

Aliás, estou meio que o plagiando. Mario Vargas Llosa tinha escrito, anos antes: “¿No comprende lo ridículo que es ser barón faltando cuatro años para que comience el siglo XX?”

Ainda assim, é difícil negar que ele foi um grande escritor, talvez o maior da segunda metade do século XX. O verbo está no passado não apenas porque ele morreu anteontem, mas porque fazia tempo que sua obra não era mais a mesma coisa.

Eu li quase todos os romances de Vargas Llosa. Só não li o último, lançado em 2023 – é que o penúltimo, Tiempos recios, foi tão ruim, tão raso e mal alinhavado, que concluí que não valia a pena perder meu tempo só para poder dizer que li todos os romances dele.

Tiempos recios é tão ruim que mereceria ser estudado em aulas de criação literária. É a história do golpe armado pela CIA que, em 1954, derrubou o presidente da Guatemala, Jacobo Árbenz. O projeto narrativo é muito parecido a La fiesta del Chivo, seu livro de 2000 que narra o assassinato do ditador dominicano Rafael Trujillo, em 1961.

Parte importante do livro é dedicada ao proselitismo ideológico. Vargas Llosa se empenha em mostrar que o golpe foi um “erro” da CIA, já que Árbenz no fundo era um democrata pró-capitalismo cujo sonho era converter a Guatemala “em uma sociedade sem fome, sem exploradores, sem pobres, de acordo com o modelo dos Estados Unidos”. Como se vê, os Estados Unidos de Vargas Llosa eram bem peculiares.

O erro, continua ele, teve graves consequências, pois levou a América Latina à radicalização à esquerda, começando por Che Guevara – que morava na Guatemala no momento do golpe – e Fidel Castro. É preciso ignorar inteiramente o que é o imperialismo e qual a posição designada por ele para a América Latina para sustentar tal posição.

Fora isso, porém, o livro é debilmente construído. As personagens principais são todas reais, mas não ganham vida. Há erros factuais e incongruências internas na narrativa. Há inúmeras repetições: por vezes a mesma personagem é descrita três ou quatro vezes nos mesmos termos. Episódios da história da Guatemala são enfiados no meio do texto, como se copiados de alguma enciclopédia, sem se encaixarem na trama. A linguagem é descuidada. Em um ou dois capítulos, Vargas Llosa apresenta seu signature dish, os diálogos cruzados de tempos diversos, sem brilho especial mas com competência; fora isso, a prosa é plana. Como disse Carlos Arturo Molina Loza numa crítica longa e arrasadora tão logo o livro foi publicado, Varga Llosa já era então um “ex-escritor em atividade”.

Também li contos, peças de teatro e ensaios. No último grupo está La llamada de la tribu, de 2018, que a propaganda da editora chamou de uma “autobiografia intelectual”. Na verdade, é uma colagem de capítulos mal costurados sobre sete pensadores que o teriam influenciado. Capítulos pobres de ideias e imaginação, meio resenhas biográficas, meio resumos de obras, com algumas anedotas pessoais intercaladas.

É uma seleção de liberais marcadamente elitistas e conservadores. Tem Adam Smith, mas não John Stuart Mill. Hayek, mas não Rawls. Ortega y Gasset, mas não Bobbio. Na introdução, Vargas Llosa afirma que o livro foi inspirado no Rumo à Estação Finlândia (mas, se este era o modelo, fracassou de forma retumbante) e conta, uma vez mais, a história de sua conversão ao direitismo, com elogios rasgados a Margaret Thatcher e Ronald Reagan, heróis do anticomunismo que, diz ele, “prestaram um grande serviço à cultura da liberdade”.

O esmagamento dos sindicatos, a destruição das estruturas de solidariedade social, o mercadismo destemperado – tudo isso é justificado com argumentos dignos de um Flávio Rocha, de um Lemann ou de uma Míriam Leitão. Um caso de estupidez ou de fé. Como é difícil acreditar em estupidez, no caso de alguém como Vargas Llosa, sobrou então a constatação que ele se tornara apenas mais um propagandista desonesto do neoliberalismo.

Nada disso me fez desgostar de sua obra. Olhando a lista de seus romances, penso que dá para identificar três fases. Entre os sete primeiros, publicados até a metade dos anos 1980, três ou quatro são obras-primas. Daí até o último ano do século XX são mais seis: obras em geral médias, entremeadas a aborrecidíssimos romances eróticos. E no século XXI, com outros sete, é ladeira abaixo. De El sueño del celta, de 2010, em diante, cada novo livro é o pior publicado até aquele momento.

Não é a memória do escritor que li na minha juventude que está falando. Na pandemia, reli os cinco livros dele de que mais gostava.

Minha lista de preferidos terminou com uma baixa. La guerra del fin del mundo, que é a história de Canudos, é bem diferente do livro de que eu lembrava. A enorme galeria de personagens nem sempre funciona bem, o caráter representativo de muitos deles é artificial demais e, sobretudo, o viés conservador da narrativa é muito mais ruidoso e onipresente do que eu pensava. Mas de lá extraí a citação sobre o ridículo de ser barão, então valeu a releitura.

Os outros quatro resistiram ao teste.

Continuo julgando La casa verde um grande livro, mas não despertou o mesmo entusiasmo da primeira leitura. Talvez porque a impressão que eu tinha era que o romance, com sua estrutura intrincada, correspondia à selva que é um de seus cenários principais: algo a ser desbravado pouco a pouco, que exigia um permanente esforço mental para ver o todo em vez de apenas cada árvore isolada. Na releitura, com uma lembrança razoavelmente nítida dos diferentes espaços e tempos que se entrecruzam, isso se perdeu um pouco.

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