Funk, stand up e apologia ao crime
Fazer de Poze do Rodo uma vítima do sistema é tão errado quanto fechar os olhos para a pedofilia de Leo Lins.
Eu nunca tinha ouvido falar nem do MC Poze do Rodo, nem de Leo Lins. Não sou ligado nem em funk, nem em stand up.
Sei que serei chamado de “elitista” por essa ignorância – vivemos em um mundo em que está tudo bem se você nunca ouviu falar de Brahms ou de Pixinguinha, de Mark Twain ou de Millôr Fernandes, mas é condenado se não conhece a última dupla sertaneja ou o tiktoker do momento. Não é nem uma divisão entre “alta cultura” e “cultura de massa”: é o presentismo que faz com que só importe o hit do momento e se ignore o anteontem como passado remoto.
Não posso fazer nada; a verdade é que não tinha a menor ideia de quem eram.
Hoje isto mudou, claro. Tornaram-se um assunto grande nos últimos dias. A direita, em geral, comemorou a prisão do funkeiro. Já na esquerda, muitos aplaudiram a condenação do humorista.
Eu, de minha parte, vejo que os dois casos envolvem questões complexas sobre a vigência e os limites da liberdade de expressão.
No caso de Poze do Rodo, dois fatos se impõem como acima de qualquer dúvida. O primeiro é que sua prisão foi tornada espetáculo, em desrespeito flagrante aos direitos do preso. Não é surpresa – é o modus operandi da nossa polícia. Mas é condenável do mesmo jeito.
O outro fato evidente é que, sim, suas músicas se enquadram como apologia e incitação ao crime. Serviriam de ilustração dos artigos 286 e 287 do Código Penal. Há o propósito cristalino de aliciar crianças para uma facção criminosa, o Comando Vermelho, e um chamado ao assassinato de integrantes de bandos concorrentes. Não são letras de grande complexidade, muito pelo contrário, logo não é difícil compreender seu sentido. E a ligação do artista com o CV é notória; ele mesmo a declarou ao entrar na cadeia. Ou seja: segundo a letra da lei, não faltam motivos para o MC Poze do Rodo ser preso.
Podemos discutir se “apologia” deveria estar tipificada como crime no Código Penal. Imagino – espero – que todo mundo concorde que incentivar crianças a trocar os livros escolares por uma AK-47 é uma monstruosidade. O discurso fácil de parte da esquerda contra a “criminalização do funk” não pode ignorar este fato inconveniente.
Mas o crime de apologia é usado para perseguir defensores do direito ao aborto, da descriminalização das drogas (uma pauta que merece debate), de formas diversas de desobediência civil. Este é o problema.
E a pena de prisão parece exagerada para delitos de opinião.
De toda forma, segundo a legislação vigente, Poze do Rodo está, sim, cometendo crimes. E, por tudo o que eu li, a possibilidade de um envolvimento ainda mais sério com o Comando Vermelho, incluindo lavagem de dinheiro e aliciamento direto de criminosos, é forte e precisa ser investigada.
Por isso, fico incomodado com muita gente à esquerda, inclusive detentores de mandatos, que está fazendo de Poze do Rodo uma espécie de herói. Como se ele, que saiu da cadeia depois de um par de dias, ele com sua mansão no Recreio dos Bandeirantes, seus contatos poderosos e seus advogados de alto coturno, fosse um representante autêntico do povo preto pobre. Como se as facções não exercessem uma forma de tirania sobre as favelas – “comunidades”, para usar o eufemismo bem-pensante – que controlam. Como se entre a criminalidade comum e a insurgência revolucionária houvesse uma diferença apenas de gradação.
A romantização da bandidagem é frequente em uma esquerda desprovida de força no mundo social. Uma colunista “progressista” da Folha chegou a escrever que a festa na libertação do funkeiro foi “uma amostragem (sic) bem razoável do poder e da força que o povo tem quando se une”. A deputada Erika Hilton, do PSOL, tuitou um apelo para que Oruam, outro funkeiro ligado ao CV, se unisse à “organização popular” para “fazer revolução com o pé no chão”. E terminou com um “estamos juntos”.
(Diante da repercussão negativa, a deputada se defendeu dizendo que não pode condenar alguém pelos crimes do pai. Ainda tentou lacrar: se fosse assim, “metade dos gays do Brasil estariam presos por homofobia”. Ficou feio, deputada. Seria melhor admitir que errou. Sua resposta, se não é deboche, mostra excesso de desinformação. Oruam está longe de ser um inocente. Ele exalta os crimes do pai, promove sua facção, ameaça publicamente seus desafetos. Tem tatuado no peito o rosto de Elias Maluco, o assassino do jornalista Tim Lopes. Para mim, tatuar a cara de um assassino no peito o coloca do lado de quem anda com camiseta de torturador, não do meu lado.)
Mas o que há de revolta no Comando Vermelho e em outras facções criminosas? São, na verdade, grandes empresas, com vastas conexões internacionais, imbuídas de uma mentalidade predatória, individualista e consumista, que exercem poder despótico nos territórios sob seu domínio e operam com uma mão de obra cuja grande virtude é ser absolutamente descartável – uma amostra, isto sim, do funcionamento do “necrocapitalismo”.
Julgar que o crime organizado é um aliado potencial na luta revolucionária não é apenas ingênuo, é um grande erro,
Do lado dos identitaristas, Poze do Rodo foi reduzido à cor da sua pela: era negro, logo sua prisão era injusta. Sem ignorar o peso do racismo na forma como ocorreu a ação da polícia, convém não deixar de lado outros atributos do cantor – como dinheiro farto e acesso a advogados de primeiro time, que logo o soltaram e que provavelmente vão garantir sua liberdade por muito tempo, mesmo que crimes mais graves sejam provados. Comparar sua situação à de um negro pobre ou mesmo de um branco pobre é uma desonestidade.
No meio da defesa acalorada do bardo do Comando Vermelho, cheguei a ver parte de uma polêmica bizarra, que tinha desandado para uma questão de prosódia. Uma ativista, que defendia o MC Poze, justificava pronunciar e escrever “fragrante” em vez de “flagrante” (o que ela faz de caso pensado, não por engano, convém assinalar), com o argumento de que é o falar próprio de “nós, da África Central”.
E eu que sempre achei que ela era de Salvador! Enfim, a discussão – importante – sobre preconceito linguístico era, uma vez mais, malversada para dar lugar a uma performance lacradora.
No mesmo vídeo, Akotirene afirma que “a fé pública do policial é questionável aos olhos de Xangô”. Nos comentários, seguidores claramente não entendiam o conceito de “fé pública”, achando que ela estava se referindo à religião do soldado. Mas o fato é que ela julga possível invocar um argumento deste naipe para discutir a ação de um agente do poder público. Assim vamos nós, com a laicidade do Estado, sempre combatida pela direita, agora sendo também acossada por discursos identitários pretensamente progressistas – e, de fato, profundamente retrógrados.
Diante da sensação de insegurança generalizada nas cidades brasileiras, a esquerda encontra dificuldade para combater o punitivismo, o amor à truculência e as soluções fáceis enunciadas pela direita. É o esforço para apresentar um discurso mais complexo sobre segurança pública, que inclua uma perspectiva social e os direitos humanos.
Mas daí aparece em público como amiga de bandidos, sendo incapaz de traçar linhas demarcatórias básicas – a começar por entender que é necessário o devido processo legal e o respeito aos direitos dos suspeitos, mas isto não significa aplaudir facções criminosas. Essa esquerda está apenas ajudando a direita a comorovar aquilo que diz.
O combate ao punitivismo, porém, também é contraditório na esquerda. Não falta quem acredite na ressocialização de assassinos, mas julgue que um comentário politicamente incorreto feito numa rede social mereça punição eterna. Que reclame do encarceramento em massa, mas julgue que a solução para todos nossos problemas sociais é a introdução de mais e mais condutas no Código Penal e, quando não dá certo, transformá-las em “hediondas”.
Muitos que se ergueram em defesa do MC Poze do Rodo estavam pedindo sangue no caso do comediante Leo Lins.
O caso dele é, a meu ver, um pouco mais complexo. Como falei antes, até agora eu tinha sido poupado do conhecimento de sua existência. Os primeiros exemplos de sua “arte” que vi na imprensa mostraram que ele é obviamente um escroto. Suas piadas são sem graça, grosseiras, preconceituosas e insensíveis. Mas nada disto é crime.
O que parecia incomodar muita gente progressista, até onde vi, era a insensibilidade. É um traço do mundo em que vivemos, um traço bastante problemático – a ideia de que ser sensível e empático é a obrigação nº 1 de cada um de nós. Mas este é tema para outro texto.
Mesmo aparentes incitações à violência por parte de Lins, como a frase “feminista boa é feminista morta”, podem dar margem a interpretação – há a figura de linguagem da hipérbole, há o sarcasmo, há o recurso ao absurdo, elementos que mesmo no humor mais raso estão presentes. Ou vamos punir quem diz, como os anarquistas de velha guarda, que é preciso “enforcar o último padre nas tripas do último burguês”? Quem diz que Luigi Mangione, o provável assassino do presidente da empresa de seguro-saúde, é um exemplo a ser seguido? Não é melhor ver força de expressão, ênfase retórica, ironia, em vez de desígnio homicida?
Penso que a liberdade de expressão deve ser o modo padrão: é necessário muito cuidado ao limitá-la. Só quando o dano está acima de qualquer dúvida razoável.
Mas daí eu vi as piadas de Leo Lins sobre pedofilia – e, nelas, um limite foi ultrapassado com absoluta clareza. Não vou reproduzi-las, obviamente, mas o que o comediante faz é um chamamento à violência sexual contra crianças. Não se trata apenas de uma piada escrota e preconceituosa.
Este é um dos paradoxos da nossa sociedade: há uma paranoia sobre a pedofilia mas, ao mesmo tempo, sua naturalização em muitos espaços. Aqui, aliás, Leo Lins se encontra com outra parte do funk, aquela obcecada com “as novinhas”.
Faz muito tempo, apresentei num evento acadêmico um paper sobre dois casos envolvendo os limites da liberdade de expressão. Tinha o título “Rafinha e a calcinha” – os casos eram a piada de apologia do estupro de Rafinha Bastos e um comercial de lingerie estrelado por Gisele Bundchen. (Depois o texto saiu como artigo, com o nome mais solene “Discursos sexistas no humorismo e na publicidade”.)
Meu argumento era que tanto a piada quanto o comercial extrapolavam os limites da liberdade de expressão, embora por motivos diversos. Bastos participava do movimento de naturalização da violência sexual contra a mulher que é fundamental para sua reprodução em caráter endêmico na nossa sociedade. E a objetificação da mulher, que, por mais nefasta que seja, poderia ter que ser tolerada em algum outro tipo de discurso, não pode ter lugar na publicidade comercial, que é eminentemente instrumental e, portanto, possui menor proteção pelo princípio da liberdade de expressão.
Creio que o caso de Leo Lins é bastante semelhante ao de Rafinha Bastos. Na época, escrevi:
“Certamente é exagero dizer que a piada contada por Rafinha Bastos é um estímulo à prática do estupro – que vai motivar alguém a agredir sexualmente uma mulher. Mas ela colabora para estigmatizar aquelas que não se adequam aos padrões de beleza e, principalmente, reforça a ideia de que toda mulher deseja a atenção masculina e que, portanto, suas negativas são pro forma e podem (devem?) ser desconsideradas. O desprezo sistemático ao ‘não’ feminino, interpretado como um ‘sim’ envergonhado, é, como a literatura feminista tem demonstrado há anos, um dos vetores mais significativos da violência sexual.
“Esse é o universo mental comum em que se movem Rafinha Bastos e aqueles que dele riem.”
Já as piadas de Leo Lins não apenas concedem legitimidade ao pedófilo como também sabotam os esforços para fazer com que as crianças sejam capazes de identificar e denunciar quando sofrem abuso sexual. É caso de prisão? Não creio. Tenho simpatia pelo abolicionismo penal e creio que a pena privativa de liberdade deve ser reservada para casos gravíssimos. Mas, certamente, outros tipos de sanção são necessários para punir o que é, com clareza cristalina, um abuso nefasto da liberdade de expressão.
Admiro o senhor e os seus textos. Compreendo que, o "abraçamento" realizado pelos elos políticos para o Poze e o Oruam são complexos, e dado a caráter desnecessários, em vista de a pauta principal frente a exposição dos casos é apolíticos, em sua grande parte. Porém, confesso também que a questão da crítica colocada é também um sufocamento enviesado do funk, como por exemplo a "lei Anti-Oruam", que não visa afetar somente ele ou o Poze, mas também qualquer música que pode ser considerada apologia ou não. E para as esferas do poder condicionar isso é muito volátil, tanto que pode afetar não só o funk da "apologia", mas também o funk que traz conscientização (que existe) e o RAP também, igual fizeram com Racionais MC´s, Planet Hemp, dentre outros grupos.
Texto corajoso que enriquece a compreensão crítica da polêmica em torno dos dois casos. Trazer argumentos consistentes além das sedutoras palavras de ordem e aprofundar o debate de temas tão importantes, é fundamental. Grata!!