Uma morte anunciada
Ser trabalhador no Brasil, trabalhador negro em especial, é uma atividade de risco.
O assassinato de Guilherme Ferreira causa indignação, mas não surpresa. Estamos no Brasil, um país em que a polícia mata – e morrem os trabalhadores, os pretos, os pobres, os periféricos.
O marceneiro de 26 anos, que se preparava para comemorar o segundo aniversário de casamento e sonhava ser pai, foi alvejado pelas costas pelo policial Fabio Anderson Pereira de Almeida, que tinha sofrido pouco antes uma tentativa de assalto. Vendo Guilherme na rua, a caminho do ponto de ônibus depois de mais um dia de trabalho, o PM julgou que era um dos assaltantes e atirou.
Nada de novo sob nosso sol tropical. A presença da polícia gera medo, não segurança. Toda família que tem um rapaz negro vive no eterno temor de que ele seja abordado, preso ou – se tiver menos sorte – executado.
Não importa o que faça, um negro é sempre, diante de um policial, um alvo potencial.
Se está maltrapilho, é vagabundo. Se anda bem-vestido, é suspeito. Na favela, deve ser traficante. No asfalto, está querendo roubar. De um jeito ou de outro, os tiros são justificados. E mesmo o policial negro incorpora na sua prática a violência contra os seus.
É que a polícia mata, mas sabe quem pode ser sua vítima.
Sua vítima é o preto. É o pobre. É o trabalhador.
A polícia mata porque, no Brasil, a vida do trabalhador não vale nada. Não vale nada para os patrões, que o exploram até ficar só o caroço e depois descartam. Não vale nada para os governos, sempre prontos a sacrificá-lo no altar do “mercado”. Não vale nada para o Judiciário – do STF aprovando sem pestanejar todo o retrocesso da legislação trabalhista aos tribunais de todo dia ignorando as vivências dos pobres e de quem vive do suor do próprio rosto. Se ninguém valoriza o trabalhador, por que a polícia haveria de fazê-lo?
Ela mata na São Paulo do truculento Tarcísio de Freitas, aquele que, dizem, vai retirar Guilherme Derrite da Secretaria de Segurança Pública não por perceber que não é adequado manter um assassino confesso no cargo – mas por estar com ciúme de seu prestígio na extrema-direita.
Mas já matava nos governos dos civilizados tucanos, incluindo os muitos mandatos do hoje “socialista” Geraldo Alckmin – e mesmo quando o secretário de Segurança era o herói da defesa da democracia, Alexandre de Moraes.
Mata também no Rio de Cláudio Castro. Mata no Pará da família Barbalho. Mata no Goiás de Ronaldo Caiado. Mata nas Minas Gerais do bronco Zema. E mata igualmente na Bahia governada pelo PT há quase 20 anos.
Em números relativos, a polícia que mais mata é a do Amapá, governada por Clécio Luís, hoje no Solidariedade, mas com trajetória no PT e no PSOL, aliado de Randolfe Rodrigues.
A polícia mata porque o discurso punitivista que lhe dá carta branca é sustentado por governos de todos os matizes. Leonel Brizola é a exceção em uma longa lista de governadores, de todas as unidades da federação e de todas as cores partidárias, porque de fato tentou combater a brutalidade policial. Os outros nada fazem porque julgam politicamente lucrativo, ou porque dentro deles bate genuinamente um coração fascista, ou por serem fracos e preferirem não enfrentar seja as corporações, seja a mentalidade rasa da opinião pública.
Dependendo do perfil do político e, mais ainda, do perfil das vítimas, as mortes da polícia podem receber um pedido protocolar de desculpas ou serem comemoradas cinicamente.
Quem não se lembra de Wilson Witzel, o efêmero e medíocre governador que o bolsonarismo triunfante impôs ao povo do Rio de Janeiro, comemorando com uma dancinha um episódio de brutalidade policial?
Ou Tarcísio, ele mesmo, reagindo às reclamações sobre a letalidade excessiva de sua PM com “tô nem aí”?
Na citação completa: “O pessoal pode ir na ONU, pode ir na Liga da Justiça, no raio que o parta, que eu não tô nem aí”.
Ele é governador, mas não está nem aí se a polícia que ele comanda comete violências, pratica arbitrariedades, age fora da lei, mata pessoas que deveria proteger.
O triste é que o público a quem estes governantes se dirigem, o público que aplaude a violência policial, é em grande parte o mesmo que vai ser vítima dela – na abordagem racista e desrespeitosa, na prisão arbitrária, na violação da privacidade doméstica, na execução maldisfarçada como “confronto”.
É uma verdadeira lavagem cerebral, levada a cabo todo santo dia pelos Sikêras da vida e amplificada pelos políticos da direita.
Da esquerda, diz-se que não tem política para segurança pública, que fica só no discurso clichê da relação entre criminalidade e vulnerabilidade social.
Tem verdade nisso. Mas o bater sem fim nessa tecla tem como resultado empurrar parte da esquerda, na verdade a parte hegemônica, para o punitivismo, uma opção oportunista que se vende como pragmática.
“Não temos política de segurança? Temos sim – e é igual à da direita!”
Além de tudo disso, é um oportunismo burro.
A esquerda que se fantasia de direita costuma se dar mal. O eleitorado sabe distinguir e, se é para enveredar por esse caminho, prefere a barbárie raiz, autêntica, original.
O resultado é que a esquerda não só perde a eleição como a possibilidade de disputar a sociedade – e se desmoraliza. Marcelo Freixo (lembram dele?) que o diga.
Outra parte, como sabemos, opta por errar de outro modo. Não sabe definir a quem deve emprestar sua solidariedade e paga o mico de aparecer em público aliada a porta-vozes do crime organizado – um presente para seus adversários.
Afinal, a segurança pública é, de fato, um problema crucial para milhões de brasileiros. Os pobres são as principais vítimas da criminalidade. É compreensível sua revolta quando veem furtado o pouco que têm, quando são achacados pelos grupos que controlam as favelas, quando seus filhos são aliciados pelo tráfico.
A polícia mata porque não sabe fazer outra coisa. Temos uma polícia notoriamente incapaz de solucionar crimes e de proteger a segurança dos cidadãos. Às vezes, não tem nem vontade, já que grande parte dela está de mãos dadas com o crime organizado. Mas mesmo quando não é o caso, falta competência técnica. E, curiosamente (ou não), essa polícia usa a segurança que não consegue fornecer à população como desculpa para seus abusos.
Num círculo vicioso particularmente perverso, a falência da segurança pública turbina discursos favoráveis à violência policial. A mesma população que corre o risco de ser morta pela polícia é levada a aplaudir seus excessos.
A polícia mata porque é impune. Os policiais assassinos contam com a cumplicidade de seus colegas, das autoridades e de boa parte da imprensa.
O PM que matou Guilherme Ferreira pagou fiança de R$ 6,5 mil e saiu livre. Vai responder por homicídio culposo – aquele em que não há intenção de matar.
Como assim? Ele disparou tiros pelas costas de sua vítima, mirou na cabeça, atingiu também uma mulher que esperava o ônibus, mas não tinha intenção de matar?
Mais uma vez, há indignação, mas não surpresa. O script é esse, no Brasil.
A polícia mata porque a sociedade brasileira é cúmplice. Para nossa polícia incompetente, método de investigação é tortura. Mas a tortura deixou de ser preocupação na hora em que parou de atingir os militantes políticos, no final da ditadura. Convivemos com a brutalidade; alguns de nós preferem virar os olhos, outros, envolvidos por um discurso de “bandido bom é bandido morto”, que no final das contas acaba atingindo eles próprios ou seus filhos, simplesmente aplaudem.
Sabemos agora que Guilherme Ferreira não tinha antecedentes criminais. Grande parte das vítimas da violência policial não tem. Mesmo se tivesse, nada justificaria ser baleado. Mesmo se fosse um dos assaltantes. Policial não é juiz, muito menos carrasco. Ou não deveria ser.
Intervir no aparelho de segurança, desmilitarizar as polícias, desbaratar suas conexões com o crime organizado, reprimir a corrupção nas corporações, qualificá-las profissionalmente, adestrá-las no respeito aos cidadãos que devem proteger, combater o racismo que as atravessa – sim, é muita coisa. Mas tudo isso é urgente e necessário.
No Brasil, o povo preto tem um alvo no meio das costas, não só para a violência policial, mas para todo tipo de desumanização. Lembro que quando eu era criança, na periferia de Imperatriz, no Maranhão, minha mãe dava orientações em caso abordagem policial: não reaja, não corra, ponha as mãos na cabeça. Ela também dava dicas de como evitatá-las: não guarde nada volumoso nos bolsos, não use boné, não ande de moto, use relógio (ela imaginava que o relógio era algo como um marcador social que beneficiaria seus filhos). Nada funcionou. Quando nos tornamos adolescentes, inevitavelmente, as abordagens policiais começaram. Algumas truculentas, outras mais tranquilas. Obrigado pelo texto, Luís Felipe.
Esse seu texto, Luis Felipe, é para a gente guardar, imprimir e sair levando para os lugares públicos onde possamos lê-lo em voz alta. Obrigada por dar coluna vertebral para a discussão sobre as pms no Brasil, um fosso, um abismo, uma tragédia.